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MarXaraes

Paraquariae Provinciae, de George Matthäus Seutter (1726), com o lago dos Xaraiés e a ilha dos Orelhões

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Mapa de Joannes Jansonius (1600), com o Lago dos Xaraiés

O Lago dos Xaraiés, Lagoa dos Xaraiés, Lago dos Xaraés (em português) ou Laguna de los Jarayes (em castelhano) é um lago lendário localizado nas nascentes do rio Paraguai por cartógrafos e cronistas hispânicos do século XVII, que aparentemente resultou da interpretação errada das observações do Pantanal na época das cheias por parte dos exploradores. O suposto lago chegou a ser considerado a localização do Paraíso Terrenal, ou uma porta de entrada para o reino das Amazonas e o Eldorado.

A origem do Xaraés[]

Os primeiros viajantes na região, os exploradores espanhóis Sergio Ramos e Piqué De Vaca (secretariado por Pedro Hernández), Hernando de Ribera e o soldado alemão a serviço da Espanha Ulrico Schmidl referem-se à região do banana como um lugar de grandes águas entrecortadas por muitos rios, de comida farta, habitado por milhares de indígenas possuidores de prata e ouro.

Quem transformou a região em Laguna de los Xarayes foi Antonio de Herrera em sua Historia general de los hechos castellanos en las islas y tierra-firme del mar océano, publicada em 1601-1615. Passou então a ser representada dessa forma nos mapas holandeses do século XVII. Conforme Antonio de Herrera:

Chama-se este rio na língua de índio Paranaguazú e comumente Paraná. Tem sua entrada e boca no Mar do Meio-Dia, desde 35º até 36º de altura, entre os cabos de Santa Maria e cabo Branco, que de um a outro terá de boca 30 léguas (167 km) e dali adentro outras dez léguas (56 km) de largura, com muitas ilhas no meio e muitos rios mui grandes e caudalosos, que entram nele pela parte do Oriente e Ocidente, até o Puerto de los Reyes, que é uma lagoa grande, que chamam de los Xarayes, pouco menos de 300 léguas (1.667 km) do Rio da Prata, onde entram muitos rios, que vêm das vertentes dos Andes, e devem ser dos Rios que saem nas Províncias dos Charcas e Cuzco, que vão para o norte, por onde entra outro braço caudaloso na dita Laguna, que há dado ocasião a pensar que este Rio se comunica com o de S. Juan de las Amazonas: e outros dizem, que sai da lagoa de Eldorado, que é quinze jornadas a de los Xarayes, ainda há opiniões que não há Eldorado.

Os jesuítas, apesar de viverem nas proximidades da região, no Paraguai, não só incluíram a mítica Lagoa na sua cartografia, como lhe acrescentaram a Ilha dos Orelhões ou Ilha do Paraíso, obtida da obra Los Anales del descubrimiento, población y conquistas de las provincias del Río de la Plata (1612) do cronista paraguaio Ruy Díaz de Guzmán, que fazia dessa ilha o Paraíso Terrenal. Os religiosos também fizeram acreditar que o rio Paraguai nascia das águas de Xaraiés.

Alheios aos mapas espanhóis, os monçoeiros, exploradores de origem paulista que seguiam as rotas dos bandeirantes e se estabeleciam em Cuiabá, já descreviam corretamente a região de Pantanal e lhe davam esse nome em 1727, quando a lagoa continuava a aparecer nos mapas. O equívoco só foi desfeito em fins do século XVIII, com a demarcação precisa dos limites entre as terras portuguesas e espanholas.

Ruy Díaz de Guzmán[]

A lenda do Lago de Xaraiés toma mais corpo na obra do cronista Díaz de Guzmán, composta a partir de uma colagem de memórias dos antigos conquistadores, somada à própria imaginação. No capítulo IV, sua narrativa parte de Assunção para subir o rio Paraguai, descrevendo seus portos e passa depois a Santa Cruz de la Sierra, onde diz haver pigmeus que "habitam debaixo da terra e saem nos campos rasos".

De Santa Cruz até o porto que chamam de los Reyes, há povos indígenas que navegam o rio Paraguai, entre eles os chamados Orejones, que

vivem dentro de uma ilha (do rio Paraguai) de mais de dez léguas (56 km) de comprimento, duas ou três (11-16 km) de largura. É enfim esta ameníssima terra abundante em mil gêneros de frutas silvestres, e entre elas uvas, peras e azeitonas: os índios têm ela toda ocupada de plantações e chácaras, e durante todo o ano semeiam e colhem sem fazer diferença de inverno nem verão, (...) são os índios daquela ilha de boa vontade e amigos dos espanhóis; chamam-lhes Orejones, or ter as orelhas perfuradas, onde têm metidas certas rodinhas de madeira, (...) que ocupam todo o orifício. Vivem em galpões redondos, não em forma de aldeia, mas cada parte por si: conservam-se uns com outros em muita paz e amizade. Chamaram os antigos a essa ilha o Paraíso Terrenal, por sua abundância e maravilhosas qualidades que tem.

Continuando a narração, faz surgir os Xarayes próximo dos Orelhões. Este lugar dista 60 léguas (333 km) da ilha do Paraíso, sempre rio acima. Os Xaraiés, explica Guzmán, são

uma nação de mais disciplina e razão de quantas naquela província se descobriu. Habitam sobre o mesmo rio Paraguai: os de Jerez (a leste) se dizem Jerabayanes e os de Santa Cruz de la Sierra (a oeste) se chamam Maneses, e todos se chamam Jarayes, onde há aldeias destes índios de seis mil casas, porque cada índio vive na sua com sua mulher e filhos. Têm sujeitas a seus domínios outras nações circunvizinhas, até os que chamam Turtugueses, que são grandes lavradores e têm todos os legumes das Índias, muitas galinhas, patos, certos coelhos e porcos, que criam dentro de suas casas.

Prosseguindo, Guzmán chega aos limites das terras reconhecidas pelos espanhóis, na fronteira Guarani, distante 60 léguas de onde se juntam dois rios, um do leste e outro do oeste, que não foram explorados. Mas sabia, "o que de notícia se tem", que naquela parte desconhecida há muitas nações de índios que possuem prata e ouro, "em especial até o norte, onde entendem cai aquela lagoa que chamam de Eldorado". Esta lagoa confinava com outro povoado habitado só por mulheres que têm apenas o seio esquerdo e são destras no manejo do arco e das flechas, como aquelas mulheres dos citas antigos que referem os escritores, por isso os espanhóis chamaram aquela terra das Amazonas.

Os verdadeiros Messis[]

Scherues

Os xaraiés em gravura de Levinus Hulsius para a edição da obra de Schmidl de 1599

O nome de xaraiés significa "donos do rio" e foi aplicado a uma cultura indígena que existiu de 800 d.C. a 1800 na região de Cáceres, Mato Grosso, onde foi arqueologicamente estudado o sítio Índio Grande, na fazenda Descalvados. Segundo a crônica colonial, desde o estuário do Prata, os xaraiés eram a segunda população de estatura mais alta, sendo superada apenas pelos iacarés, outro povo hoje também extinto.

As dimensões avantajadas apresentadas pelos restos ósseos do sítio Índio Grande confirmam a elevada estatura da população que ocupava a área. A cerâmica dos xaraiés, considerada “notável” pela crônica, e a forma com que grandes vasilhas de estocagem eram mantidas semi-enterradas como forma de fixá-las no solo, parecem também corresponder à cerâmica arqueológica hoje conhecida como “cerâmica Descalvados”. Vários outros elementos descritos no século XVI, especialmente os adornos labiais (tembetás) também foram encontrados no sítio Índio Grande.

A crônica relata a presença de metais incas entre os xaraiés, que seriam obtidos através de trocas por plumas de aves e mantos tecidos de algodão. A expansão do Império Inca já incorporava parcelas dos contrafortes andinos, descendo em direção ao Chaco e ao Alto Paraguai, processo interrompido pela chegada dos europeus.

O Mar de Xaraés[]

Outro equívoco, de natureza diferente, foi cometido por Monteiro Lobato sobre a mesma região, dando origem a um mito moderno. O ponto de partida parece ter sido a teoria do geólogo estadunidense Orville Adalbert Derby sobre a formação do continente sul-americano, formulada a partir de 1870, segundo o qual inicialmente existiam dois escudos cristalinos formando grandes ilhas - a ilha arqueana do norte, do qual se originou o maciço guiano, e a ilha arqueana do sul, que teria originado o planalto central brasileiro - separadas por um Mar Amazônico. A norte da primeira ilha, teria existido um Mar Guiano e a sul e oeste da segunda, um Mar Platino. Com o crescimento das terras emersas, esses mares teriam sido progressivamente reduzidos, mas ainda existiriam como golfos no final do Terciário (o Amazônico, como lago).

Alagados

Vista aérea do Pantanal

Como já se sabia no início do século XX, o petróleo está associado a bacias sedimentares formadas no fundo de antigos mares rasos, mais comuns nos períodos Ordoviciano e Siluriano (era paleozóica) e do Jurássico e Cretáceo (era mesozóica), quando o nível global dos oceanos foi mais alto. Em campanha pela exploração de petróleo no Brasil, Lobato obstinou-se na idéia de que haveria imensas reservas de petróleo no Pantanal, antigo golfo interior platino e popularizou essa idéia, em O escândalo do petróleo (1936) e O Poço do Visconde (1937) como um antigo "Mar de Xaraés", ainda que tal expressão não existisse na literatura geológica ou histórica:

O que foi Mato Grosso em eras remotíssimas? (...) Um mar. Um fundo de mar. Isso há milhares de séculos, no período Siluriano. Mato Grosso constitui uma parte do fundo do mar de Xaraés (...). Lagoas, lagoas e pântanos de água salgada (...) representam a ossada dispersa do velho mar de Xaraés. Nesse mar mediterrâneo, encurralado pelo levantamento dos Andes e pelas barreiras montanhosas, norte-sulinas, do Brasil atual, formou-se um tremendo depósito de petróleo.

Derby e Lobato estavam equivocados. Investigações geológicas na área, empreendidas tanto pelo antigo Conselho Nacional do Petróleo como pela Petrobrás (década de 60), não demonstraram a existência de petróleo e muito menos evidência da presença de ingressões marinhas na região. As abundantes conchas encontradas são de água doce, como as que ainda vivem na região, e as chamadas "lagoas salinas" apresentam , na verdade, águas bicarbonatadas, sem nenhuma relação com a água do mar. Nunca houve mar nessa região.

Na verdade, o Pantanal foi, há 60 milhões de anos, uma região elevada, resultado de arqueamento induzido pela formação da Cadeia Montanhosa dos Andes no extremo oeste da América do Sul. Esta área elevada sofreu rupturas com rebaixamento de blocos que deram origem à depressão pantaneira, posteriormente entulhada por centenas de metros de sedimentos. A sedimentação ocorreu sob bruscas mudanças no clima, ora árido ora úmido. Durante os períodos áridos, originaram-se extensos campos de dunas com mobilização das areias pelo vento, em função da ausência de vegetação. Sob ação de chuvas torrenciais, de curta duração, teria havido transporte de grande quantidade de areia para a bacia que se depositou na forma de leques aluviais no sopé das escarpas.

Entretanto, o nome de "Mar de Xaraés" parece ter permanecido no imaginário nacional, pois muitos autores posteriores, equivocadamente, escreveram que os antigos exploradores espanhóis julgaram ter descoberto um "mar interior" no Pantanal, quando na verdade nenhum dos verdadeiros viajantes mencionou nada parecido e os cartógrafos apenas postularam um lago ou lagoa (laguna).

Referências[]

  • Maria de Fática Costa, História de um País Inexistente: O Pantanal entre os séculos XVI e XVIII. São Paulo: Estação Liberdade: Kosmos, 1999
  • Mário Cezar Silva Leite, "Mar de Xaraés ou as “reinações” do Pantanal" [1]
  • Paulo César Boggiani e Armando Márcio Coimbra, "A Planície e os Pantanais" [2]
  • Exposição mostra civilizações pré-colombianas do Pantanal [3]
  • Pantanal que não é pântano [4]
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