Mianiquê-Teibê Quando foi de-noite eles estavam dormindo num banco do Flamengo quando chegou uma assombração medonha. Era Mianiquê-Teibê que vinha pra engolir o herói. Respirava com os dedos, escutava pelo umbigo e tinha os olhos no lugar das mamicas. A boca era duas bocas e estavam escondidas na dobra interior dos dedos dos pés. De longe o texto mais lido em todo o blog é aquele onde faço uma breve cena onde figura a criatura título. Miniquê-Teibê foi, ao longo dos últimos dois anos, um texto em que todos os dias alguém cai aqui no blog por fazer buscas na internet. Isso sempre me pareceu um indicativo da ausência de boas fontes e da curiosidade das pessoas sobre essa assombração citada por Mário de Andrade no seu Macunaíma.
Tentando fazer o caminho oposto das pessoas que aqui chegam, tentei descobrir por que tanta gente se interessa e minha resposta foi paradoxal: chegavam ao meu texto pelo desinteresse geral que o tema gera. Vou me explicar. Faz uns anos que na academia o folclore perdeu espaço sendo tratado como um assunto pouco nobre para as altas ciências culturais (o que via de regra é como sempre foi tratado no Brasil) ou então absorvido por correntes politicamente corretas que visavam, sem perceber, o mesmo que seus adversários elitistas: fazer do folclore alta cultura.
Sem entrar nesse campo por muito tempo, pois isso seria assunto pra um texto próprio, vou me ater a uma expressão já folclórica para explicar minha posição acerca dessa falsa dicotomia, “alta cultura é o meu ovo!”
O folclore não precisa ser elevado a alta cultura, ele é cultura e ponto. E o que prova isso é a curiosidade que ainda desperta, mesmo nas cidades onde teoricamente a cultura foi espaço vencido pelas influências da modernidade tardia. Para isso, restam os grupos de entusiastas de folclore, herdeiros do folcloristas do século XX que apesar de competentes, fazem o trabalho de desbravar o caminho sozinhos e sem o apoio da alheia academia. E é assim que o conhecimento se perde.
Esse será um texto longo, talvez eu precise fazer adendos em outros que remetam a esse. Mas o tema é interessante, então vale a pena. Se você chegou através de buscas no google, me dê essa chance e conheça meu blog, compartilhe e troque ideias com seus amigos que também se interessam pela cultura popular do Brasil.
Fonte da lenda
Não vou perder tempo e vou dar logo um resumo do que encontrei, Cavalcanti Proença cita, no seu Roteiro de Macunaíma, o livro “Lendas em Nheengatu e em Português” de Antônio Brandão de Amorim como a fonte primeira para a criatura chamada Mianiquê-Teibê. “[…] o collector das historias e lendas que se vão ler, nasceu a 7 de agosto de 1865 na cidade de Manáos, capital da então provincia do Amazonas. Foram seus paes o Commendador Alexandre Paulo de Brito Amorim, natural dos Arcos de Val-de-Vez, Minho, e D. Amelia Brandão d’Amorim, amazonense, filha de Antonio José Brandão, natural de Guimarães, Portugal.” ( Retirado do verbete sobre o autor no site da Hemeroteca do IHGB).
Antônio Brandão coletou diversos tradições orais de tribos indígenas do norte e noroeste do Amazonas e as publicou em português e Nheengatu, língua corrente da região à época. minhas pesquisas me levam a crer que teve contato especialmente com as tribos Uananas na bacia do Rio Negro, mas careço de mais referências para afirmar com certeza.
O primeiro conto registrado no livro, fala sobre jovens e belas índias virgens que foram buscar comida em plantações. Nessas plantações, foram surpreendidas por moços muito bonitos que com elas se deitaram. Algum tempo depois, elas ficaram grávidas destes homens que diariamente apareciam para elas quando iam sozinhas buscar comida, e logo depois de deitarem com elas, desapareciam ao som de bater asas de abelhas.
Percebendo o que estava acontecendo, os velhos da tribo pediram que as mulheres velhas fossem fazer a roça e neste dia abelhas apareceram, zumbiram e foram para o céu.
Um tempo depois, estavam todas as mulheres na aldeia quando ouviram um zumbir muito alto de abelhas. Um homem muito bonito surgiu entre as abelhas e avisou que dali a alguns dias, ele seus parentes viriam para fazer uma festa e deveriam ser recebidos com comida e bebida. E assim aconteceu, os moços vieram e foram recebidos com vinho de mandioca. E as moças da tribo logo foram dançar com eles. Pouco a pouco as moças foram entrando em transe e começaram a definhar ao som de asas de abelhas. Os moços eram espíritos e estavam matando as moças da tribo.
Elas estavam tão felizes e encantadas que quando uma desaparecia, deixando só a pele para trás, logo outra moça tomava o seu lugar para dançar e morrer. Um jovem menino gritou que elas estavam loucas e não viam mais o que acontecia. O menino escondeu sua vó, para que também não morresse como os jovens e pela manhã passou a gritar para a todo tribo que estavam loucos e não viam o que se passava. O chefe dos guerreiros, Mianiquê-Teibê vendo que ninguém resolvia o problema, pegou o cocar do chefe e colocou na cabeça, como quem assume o controle da tribo. Mas ele não era o cacique, e por isso foi amaldiçoado. Sua cabeça caiu naquele mesmo momento junto com o cocar, e como não tinha mais cabeça, seus olhos, nariz e boca desceram para o corpo e ele virou uma assombração. Ele então partiu para longe daquela terra, pra nunca mais voltar.
O menino então pegou as peles dos mortos e jogou no rio e de noite as estrelas choraram sobre a tribo e os que sobraram, e lhes deram sementes para plantar, dizendo que enquanto plantassem aquelas sementes seriam deles aquela terra. E foi a origem do povo Uanana.
Macunaíma e Mario de Andrade
Retirado da Enciclopédia Itaú, Mário de Andrade (São Paulo, São Paulo, 1893 – São Paulo, São Paulo, 1945) foi poeta, cronista e romancista, crítico de literatura e de arte, musicólogo e pesquisador do folclore brasileiro.
Um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 22 é reconhecido pela formação literária nas escolas brasileiras em geral pela obra Macunaíma, onde podemos identificar uma das principais ideias do autor. “Para Mário, é preciso que a arte e a literatura brasileira realizem um mergulho na realidade do país. É esse o caminho anunciado por ele e Oswald de Andrade e seguido por muitos. Esse “abrasileiramento”, contudo, não deve recair no regionalismo.” (Trecho também retirado da Enciclopédia Itaú cultural)
Digo isso tudo para demonstrar duas coisas. A primeira é que Mario de Andrade é um autor complexo, e provavelmente não o oferecemos da forma adequada na maior parte das escolas no país. Sem contexto e de maneira autoritária, a escola empurra Macunaíma guela abaixo dos estudantes e espera que sejam capazes de digerir tudo aquilo. Nem mesmo o maior entusiasta do manifesto antropofágico diria que isso seria possível. É preciso saber as referências de Mario para entender o que ele escreve. E este é o segundo ponto, Mario de Andrade era um folclorista. Voltamos para o tema.
FONTES FOLCLÓRICAS E RESSIGNIFICAÇÃO
Folclore sempre está presente na literatura de um povo, seja através das histórias ou dos costumes. Essas tradições expressam muito do que nós somos. E esquecer algo é igualmente revelador. Me deixa bastante triste que no começo do século passado, essa história tenha chegado até Mario de Andrade e que hoje, os entusiastas não tenham fácil acesso a ela. Por muito tempo pensei que talvez Miainiquê-teibê fosse uma amalgama de mitos reunidos por Mario de Andrade. Sua figura lembra muito outras criaturas que eu reconhecia da mitologia grega e que parecem remeter ao Egito e grande Oriente médio: “Alguns acreditam que na Líbia nascem os Blemmyae, troncos desprovidos de cabeça, com a boca e os olhos no peito. Outras criaturas viriam à luz sem pescoço e com os olhos nos ombros.” […] Umberto Eco, História da feiura, p 121.
Para mim, seriam uma possível influência europeia sobre mitos antigos da população indígena, como aconteceu com a Iara, por exemplo.
Mas não, temos aqui uma tradição completa, que se desenvolveu sozinha e pode ser resgatada para entender melhor como funcionava a cosmologia e o pensamento de um povo único, oriundo das terras que hoje nós chamamos de Brasil. Vale dizer que, na Poranduba, Barbosa Rodrigues apresenta a lenda do díluvio, depois do qual as mulheres já nasceram com os olhos abaixo do peito. Também, os viajantes Spix e Martius falam de lendas de homens sem cabeça e com a cara no peito.”
Por isso, creio que é importante verificar essas fontes antigas, ao menos para quem busca estudar os mitos indígenas brasileiros e também o fazer com o respeito de saber que não são apenas histórias, mas fundamentos de toda uma forma de enxergar o mundo. Mas isso é papo para um outro texto.
Fontes:
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa20650/mario-de-andrade
História da Feiura, Eco, Umberto, editora Record.
Roteiro de Macunaíma, Cavalcanti Proença, Editora Civilização Brasileira
Blêmios povo: https://pt.wikipedia.org/wiki/Bl%C3%AAmios
Blemios mito: https://en.wikipedia.org/wiki/Headless_men
Uananas: https://pt.wikipedia.org/wiki/Uananas
Espero de verdade que este conteúdo tenha sido útil para você. Durante muitos anos, a curiosidade me orientou em descobrir se o Mianiquê Teibê havia sido uma construção da imaginação de Mário de Andrade ou um sequestro de uma cultura que acabou sendo deixada para trás.
O Um de Tudo nasceu justamente com esse propósito e se você chegou até aqui, talvez queira conhecer os valores e ideais do blog.
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Fontes[]
https://umdetudo.wordpress.com/2018/02/09/conto-mianique-teibe/
https://umdetudo.wordpress.com/2020/05/01/artigo-mianique-teibe/